Madeira: o que está por trás dos móveis?
Empresas costumam alegar que não têm poder de polícia e que não podem avaliar eventuais ilegalidades em sua cadeia produtiva. Mas esse argumento perde legitimidade perante consumidores e as próprias empresas – afinal, ao comprarem produtos, elas atuam como financiadoras dos processos produtivos. Se compram madeira ilegal, ajudam a financiar um crime. Pelo perfil dos compradores da madeira vinda da Amazônia, constata-se que setores da construção civil, da indústria de móveis e de pisos são grandes financiadores da devastação da floresta.
O setor de construção civil, que trabalha com cenário estratégico de 20 anos, prevê, numa premissa conservadora, que o PIB das construtoras e incorporadoras duplicará até 2030, passando para R$ 69,8 bilhões em 2030. Temos o “Minha Casa, Minha Vida”, uma Copa do Mundo e uma Olimpíada pela frente, que vão exigir muita, mas muita madeira.
Esses investimentos em novos imóveis e obras públicas, ao exigirem novos derivados de madeiras com as mais diversas finalidades, devem pressionar o bioma amazônico. Cabe ao setor produtivo assumir suas responsabilidades. De onde virá a madeira? Como sua origem será monitorada?
Veja os estudos de caso
Visualizar Madeira em um mapa maior
Pesquisas recentes informam que caiu a produção de madeira ilegal no país. No Pará, um estudo do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) revela que houve uma redução de 75% na área de floresta explorada sem autorização. O período pesquisado vai de agosto de 2007 a julho de 2009. Outro relatório, divulgado pelo Instituto Real de Assuntos Internacionais do Reino Unido, indica uma redução de 22% na exploração ilegal de madeira, desde 2002, nos países com as maiores matas tropicais, dentre eles o Brasil. Segundo o documento, a proporção de madeira ilegal no Brasil, em comparação com a madeira legal, era de 60% em 2002 e caiu para 34% em 2010.
Os estudos citados anteriormente baseiam suas conclusões em dados sobre desmatamento, produção de madeira, consumo e transporte, produzidos por satélites e fiscalizações de campo. Também se valem dos sistemas integrados de licenciamento e controle de movimentação do produto. Os resultados são animadores, mas, apesar da gama de informações reunidas, eles podem estar superestimados. Isso porque novas formas de burlar a legislação foram criadas através do uso de brechas do próprio sistema integrado de fiscalização e controle, com o objetivo de esquentar a madeira e fazê-la chegar ao consumidor devidamente documentada.
Histórico do problema
No Mato Grosso, a madeira se transformou em novo escândalo nacional em maio de 2010. Uma organização criminosa formada por funcionários do alto escalão da fiscalização ambiental, empresários e políticos foi flagrada pela Polícia Federal. O grupo maquiava madeira retirada ilegalmente e a comercializava em todo o Brasil, nos Estados Unidos, na Europa e no Oriente Médio. A transcrição de gravações telefônicas, realizadas com autorização judicial, mostra diretores da Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Mato Grosso (Sema-MT) negociando o horário e a forma das fiscalizações. Nas gravações, os funcionários também combinavam os nomes dos fiscais que deveriam fazer o serviço.
Em 2008, a primeira edição do estudo “Conexões Sustentáveis – Quem se Beneficia com a Devastação da Amazônia” revelou o esquema criminoso envolvendo funcionários da Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Pará (Sema-PA) para “esquentar” madeira ilegal. Através desse esquema, o produto da devastação era negociado normalmente por madeireiras de grande porte e companhias exportadoras.
Apesar da exposição pública da corrupção, novas informações indicam que as fraudes continuam ocorrendo no Pará. É o que revelará um novo estudo do Instituto Observatório Social, em fase de finalização, sobre a existência de um mecanismo para camuflar a retirada de madeira de terras indígenas e áreas de preservação ambiental. Empresários, políticos e funcionários da Sema-PA teriam formado um consórcio para burlar a legislação e fraudar documentos envolvendo centenas de milhares de metros cúbicos de madeira, usada para fabricar carvão e abastecer a indústria mundial do aço.
A fraude
Como se vê, no Pará e no Mato Grosso as técnicas para “esquentar” a madeira usam o próprio sistema de controle e fiscalização como aliados, graças a brechas que permitem, por exemplo, registrar um carregamento que saiu de uma área de manejo as 9h10 e chegou à madeireira às 9h11 do mesmo dia, ou seja, apenas um minuto depois. Como numa máquina de teletransporte dos filmes de ficção científica, a madeira desaparece do meio da floresta e reaparece, um minuto depois, dentro de uma empresa de beneficiamento localizada até mil quilômetros de distância.
Isso acontece porque a madeira, de fato, nunca saiu do local indicado. Houve apenas um lançamento fraudulento no sistema para esconder um desmate ilegal, realizado em áreas indígenas e de preservação e não nas zonas de manejo autorizadas. Os indícios apontam que lançamentos desse tipo ocorriam em escala industrial, o que coloca boa parte das estatísticas oficiais sob suspeita. Os levantamentos realizados pelos serviços de inteligência da Polícia Federal e do Ibama identificaram madeireiras em que 50% da produção poderia ter origem ilegal. Houve casos em que os investigadores, quando foram conferir a placa dos caminhões que teriam feito o transporte das cargas, chegavam a veículos de passeio e até motocicletas.
A investigação
Os esquemas usados no Pará e no Mato Grosso deixam rastros. Assim, foi possível para esta pesquisa acompanhar não apenas as transações entre empresas, mas a unidade de madeira em si, a madeira ilegal desde sua entrada na ponta da cadeia até a venda para o consumidor final.
Além das relações predatórias entre empresas, há um acompanhamento direto do produto retirado ilegalmente. Esse modelo abre possibilidades inéditas para as empresas que compram madeira. Elas não podem mais alegar que a madeira está documentada e, portando, legalizada. O modelo mostra que é possível identificar a ilegalidade mesmo na madeira aparentemente legal. É preciso vontade e a decisão firme de não compactuar com esquemas criminosos. É possível acompanhar a madeira desde a origem e identificar se a documentação é falsa ou esquentada.
Também se faz necessário evitar negócios com empresas que vendem uma parte da produção de forma certificada, enquanto cometem crimes ambientais na outra parte. Relacionar-se com empreendimentos que possuem dois modos de produzir pode significar financiar a ilegalidade através da compra de produtos legais.
Cenário futuro
Muitas empresas costumam alegar que não têm poder de polícia e que não podem avaliar eventuais ilegalidades em sua cadeia produtiva. Mas, a cada dia, esse argumento perde legitimidade perante consumidores e as próprias empresas – afinal, ao comprarem produtos, elas atuam como financiadoras dos processos produtivos. Em última análise, se compram madeira ilegal, ajudam a financiar um crime.
Os casos relacionados neste estudo tratam-se apenas de alguns exemplos e se restringem à cidade de São Paulo. Pelo perfil dos compradores da madeira vinda da Amazônia, constata-se que setores da construção civil, da indústria de móveis e de pisos são grandes financiadores da devastação da floresta.
Estimativa da Caixa Econômica Federal apontava que, ao final de 2010, um milhão de novas unidades habitacionais seriam contratadas pelo programa “Minha Casa, Minha Vida”. O setor de construção civil, que trabalha com cenário estratégico de 20 anos, prevê, numa premissa conservadora, que o PIB das construtoras e incorporadoras duplicará até 2030, passando de R$ 34,5 bilhões em 2008 para R$ 69,8 bilhões em 2030. Isso representa um crescimento médio anual de 3,3%, com a expansão do volume de lucro na mesma proporção – o lucro bruto passaria de R$ 24,9 bilhões para R$ 50,4 bilhões. Por fim, temos uma Copa do Mundo e uma Olimpíada pela frente, que vão exigir muita, mas muita madeira.
Esses investimentos em novos imóveis e obras públicas, ao exigirem novos derivados de madeiras com as mais diversas finalidades, devem pressionar o bioma amazônico. Cabe ao setor produtivo assumir suas responsabilidades. De onde virá a madeira? Como sua origem será monitorada?
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